Be My Guest…

Talvez fosse apenas um cartão de visitas macabro. Nada mais comum do que entrar num elevador velho, mal conservado e encontrar um travesti esfaqueado. O sangue ainda era fresco e molhou de leve a sola da minha bota esquerda. Tive a certeza de ao deixar o elevador ouvir um pedido de socorro. Passo atrás e o elevador, do meu 16º andar, já havia sido solicitado em algum outro andar. Liguei na recepção para avisar do ocorrido e me disseram que aquilo era comum sim, e que as providências já haviam sido todas tomadas.

Um acerto de contas, um travesti viciado em cocaína teve sua garganta perfurada por um punhal após se negar a pagar sua dívida com dinheiro ou com amor.

Ah sim. A vítima e o assassino eram amantes.

Aguardei os telejornais noturnos para obter mais informações mas tudo que vi e ouvi falava sobre as falhas no escudo antimísseis americano que protegia seus aliados na Europa, em especial a Inglaterra, o atentado em Los Angeles que vitimou 67 pessoas e ainda não tinha suspeitos e mais dois ou três novos casos de corrupção no governo.

Trivial.

A Rússia enlouquecida, a Europa amedrontada e americanos cavando bunkers no quintal de suas casas no subúrbio realmente mereciam bem mais atenção do que um assassinato passional em São Paulo – e ainda num conjunto de prédios majoritariamente habitados por profissionais do sexo, imigrantes ilegais do Leste Europeu, traficantes, escritores, músicos, pintores e outros artistas frustrados.

Inclua nessa lista gente como eu: um fotógrafo falido, que já cobriu desfiles de moda para as maiores grifes nos anos 90 e gerou panoramas românticos e inesquecíveis de Paris para centenas de guias de viagens. Para um alcoólatra, viciado em sexo, agora livre das drogas mas não das dívidas, seja na França, seja no Brasil, nenhum outro lugar seria mais apropriado.

E a possibilidade de atrasar o aluguel por dois ou três meses de vez em quando sem ser despejado – apesar das ameaças – fazia do Continental Hall & Residence, um velho hotel de luxo transformado num residencial de baixo nível, o local ideal para fracassados, transgressores e desajustados da sociedade em geral.

Hoje vivo de fotografar ensaios eróticos para as prostitutas e travestis que moram aqui ou testam meu cartão de visitas. Engraçado e tolo, o fato de ser um parisiense aparentemente refinado, que vive aqui por opção própria e não monetária, leva esses profissionais do sexo a buscar meus serviços com bastante frequência, encontrando em mim um requinte e frescor que não tenho desde que pisei pela última vez numa passarela produzida pela Chanel.

Anton Golithly. Melhor que Antoine Dubois, meu nome de batismo e na lista de vários credores, estelionatários e também de gente comum. Adotei o sobrenome do meu padrasto, que substituiu meu pai após sua morte, embora já frequentasse a cama de minha falecida e nada saudosa mãe antes que o velhor Henry Dubois, derrubasse sangue um formato de suor para sustentar mulher e filhos na periferia de Paris.

Hoje nem meu padrasto, nem minha mãe, ou mesmo minha querida e esta sim saudosa irmã, Alice Dubois caminham mais sobre a Terra. A pobre idiota conseguiu ser atropelada por um ônibus de turistas poloneses numa rua próxima ao Hôtel des Invalides. Fones de ouvido no volume máximo e um motorista desatento levaram a pobre Alice para o mundo dos extintos com apenas 15 anos de idade.

Vejo mais como uma benção do que uma tragédia a morte de minha irmã. Com quinze anos já havia visto debaixo do humilde teto de nossa casa em Saint-Ouen tanta barbárie e tristeza que o repousar de seus ossos as vezes me faz pensar se não seria uma boa ideia mirar uma locomotiva do metrô, um ônibus ou um caminhão qualquer e se juntar a ela.

Como se uma alma podre e maligna como a minha tivesse o privilégio divino de ocupar o mesmo espaço que ela post-mortem.

Que deus, em toda sua ironia, surdez, cegueira e sadismo guarde-a num bom lugar.

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